Vidigal Advogados

Trabalho e Direito do Trabalho

A conhecida concepção de que na Antiguidade Clássica o trabalho manual era tido como atividade vil e degradante perdeu força ao longo do tempo, quebrando-se a propalada contraposição entre o fazer e o ócio naquele período após alguns estudos a propósito. Por isso, conquanto tenha sido posição tradicional, durante algum momento no cenário filosófico, atribuir natureza desprezível ao trabalho humano, emoldurando-se o fazer em uma atmosfera de sofrimento, dor, tortura e desonra, a verdade é que há tempos encontra-se ultrapassada esta idéia de que a era clássica assim pensava.

            É certo que em muitos textos dos primórdios da filosofia ocidental verifica-se nítida a oposição entre o trabalho manual e a vida contemplativa, representada esta pelo bem pensar, conferido apenas aos chamados homens de bem, dignos e privilegiados. E é nessa linha que se propaga que os gregos, por exemplo, tinham o trabalho manual em conta de atividade desprezível, causador de fadiga física e motivo de aprisionamento do homem. Daí a afirmação de que na Grécia antiga não havia respeito ao trabalho nem dele se cogitava como elemento estrutural de função social concebido como papel inerente e necessário ao ser humano. Ao contrário. O trabalho seria o reverso de toda forma de vida livre.

 Aristóteles, além de escravagista, chega a pregar, na Política, que no Estado conduzido do melhor modo, constituídopor homens justos, os cidadãos não devem levar a vida de mecânico ou de mercante (essa espécie de vida é desprezível e contrária à virtude) e nem tão pouco ser camponeses aqueles que querem tornar-se cidadãos. Era a necessidade do ócio para cultivar a virtude e as atividades políticas. É dele, aliás, a concepção de que sem um mínimo de ócio e de ilustração não se consegue alcançar o estado de cidadão, pois não se pode participar sem tempo e disponibilidade para a reflexão, impedida pelo trabalho.

            Mas é necessário entender que nesse contexto o ócio não é a inércia, já que esta se afasta da virtude – ideal máximo do pensamento grego e sempre relacionado à prática. O mesmo Aristóteles diz que exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade.

  De todo modo, a contraposição inicial não é inteiramente equivocada. Ressalvadas raras exceções, partindo da Antiguidade, o trabalho manual – a ars mechanica – chegou à Idade Média sem alcançar desejável patamar de dignidade e valor. O medievo, que presenciou uma revolução industrial a seu modo, adotou os regimes do trabalho servil e do artesanato, em que os servos e os artesãos ou artífices eram considerados manuais em relação aos senhores. E aí a forma de produção característica e a feição estrutural e organizativa da sociedade laborista tinham acentuado cunho familiar ou corporativo. E sem louvores exaltados ao trabalho, com ressalva acentuada para a palavra de Agostinho, que o transforma de execração em benção.

    A  filosofia da modernidade ocidental, não obstante as cruéis condições de trabalho geradas pela chamada primeira revolução industrial, aos poucos cuidou de conferir-lhe lugar proeminente enquanto valor, chegando a identificá-lo com a própria razão da existência, em uma autêntica perspectiva mítica. Tratou-se, neste particular, de constituir o sujeito a partir da categoria moderna de trabalho. O ideal do ser humano passa a ser a imagem do trabalho. A sua realização se dá no exercício do trabalho e não fora dele. A concepção de trabalho tornou-se, então, componente pessoal e social de primeira importância. E fez-se dignidade humana.    

               Fez-se dignidade, mas não foi tratado como tal em sua execução real nas minas e nas fábricas. E por isso o próprio culto moderno que se lhe dedica não chegou a se livrar de ataques virulentos, sobretudo dentro da sociedade burguesa, por seu aspecto lucrativo e conhecida voracidade material. Basta lembrar o enfoque filosófico, e talvez ideológico, de época não muito distante, segundo o qual a idéia de que o trabalho enobrece o homem é fórmula traçada pela classe dona do capital, dominante e opressora. Mas aí entra em cena a dicotomia essencial a propósito dessa perspectiva ôntica do trabalho: sua mística concorre seja para benefício do lucro no capitalismo, seja na construção do Estado no socialismo real.

   Mas – ainda uma vez, mas –, são as várias faces incorporadas pelo capitalismo ao longo da sua trajetória que revelam um invejável poder de manipulação valorativa do trabalho humano, desde a reverência, característica do que se considera o início da história do capital, à própria desconstrução e precarização imprescindíveis à expansão mundial da moeda e da sua lógica. A primeira, necessária à fábrica, à produção incontida; as segundas, típicas da evolução tecnológica, da pulverização e da fragmentação do ser humano.

Hoje, muito mais do que antes, a humanidade, metida em um labirinto cultural tecnocrata e digital, indaga-se, atônita – do ponto de vista dos valores fundamentais e com cariz ontológico –, se é possível a realização e o desabrochar do ser humano para e no trabalho, seja manual ou intelectual. Parte-se, então, da constatação de um novo mal-estar ligado a pressões físicas, psicológicas e às tensões psíquicas vinculadas ao novo perfil da organização das relações trabalhistas e da natureza mesma dos trabalhos executados.

As mudanças sociais modernas e contemporâneas, provocadas pelo fenômeno da aceleração das mutações econômicas, financeiras e, em altíssimo grau, tecnológicas, dentro do contexto de uma sociedade capitalista excludente, retiram o ser humano do centro das preocupações. As pessoas – entre elas, o trabalhador, é claro – passaram a ser presas de uma armadilha de aspirações de sucesso exclusivamente material. E o trabalho, que na idade moderna começava a se apresentar como um bem e um valor, permanece enfrentando questões de fadiga física e psíquica, agora analisadas também sob a perspectiva do tédio, da falta de sentido e do menoscabo aos direitos fundamentais. E, com isso, mostrando-se multifário em suas perspectivas e interdisciplinar como objeto de investigação, torna-se alvo de estudos das mais variadas esferas da ciência (biológicas, sociais, humanas), às quais se soma, como essencial, a filosofia, porque atinge o íntimo da questão do homem: a razão de ser da existência. Não mais nos moldes de alguns aspectos clássicos ou medievais, mas como fator de mal-estar do ser no amorfo mundo do trabalho contemporâneo.

Embrionário no mundo feudal e fruto da revolução industrial iniciada no século XVIII na Inglaterra, o Direito do Trabalho sempre transitou em terreno movediço, ao sabor de políticas sociais e econômicas de época, embora sua finalidade, nada obstante a aquiescência fiscalizadora do setor dominante, tenha sido sempre a proteção do trabalhador enquanto pessoa.

A normativa laborista, seja de origem estatal, seja oriunda da autorregulação, estabelece sempre – e cada vez mais – apenas o mínimo ligado unicamente a condições de suportabilidade, e jamais conseguirá expulsar a entediante prisão do mero fazedor e levá-lo à felicidade e à liberdade. A submissão imposta pelo trabalho, sob qualquer das suas formas, sofrerá tão somente as variações determinadas pelo perfil da política econômica de plantão, que, por sua vez, não tem costume de se postar ao lado do homem e de suas necessidades naturais e fundamentais.

 Já se disse, aliás, que toda canção de liberdade vem do cárcere e não é outra a imagem que surge quando a doutrina do Direito, toda ela, pressionada pela interdisciplinaridade dos temas que lhe são afetos, clama em todo o mundo pela realização e pela eficácia dos direitos fundamentais em suas distintas dimensões ou gerações.     

A quem interessa esquecer a essência do trabalho humano? É preciso responder a esta pergunta para que se possa identificar o ideal do trabalho em sua pureza ética e como conceito forjado no seio da filosofia, para, então, assim inseri-lo na realidade jurídica.

Autor
Márcio Flávio Salem Vidigal

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